Evite palavras que seus avós não usavam (26/30)
Chame filhos da puta de filhos da puta.
Sabe esses termos que talvez até existissem antes, mas ninguém usava nem dava falta?
Mas, de repente, você não passa um dia sem que eles pulem diante dos seus olhos ou ouvidos e - esse é o mal maior - tem a impressão de que é impossível exprimir certas ideias sem usá-los?
Vou ilustrar com três exemplos rápidos e fáceis:
Nossos avós sobreviveram muito bem às dificuldades da adolescência e começo da vida adulta sem falar em “empatia”, “resiliência” e “responsabilidade emocional”.
Não por isso eram desprovidos de compaixão pelo sofrimento alheio, desistiam dos seus projetos diante da menor dificuldade ou não estavam nem aí para o fato de que suas ações teriam reflexos nas emoções dos outros.
Agora, se você for conversar com um jovem adulto dessa nossa enigmática geração, as chances são grandes de alguma dessas palavras aparecer. Minha aposta é que virão, usadas numa frase curta, que não diga nada muito profundo, mas conclua o assunto com ares de intelectualidade e alta compreensão sobre si e sobre os outros.
Eu consigo me lembrar da primeira vez que ouvi “empatia”. Ou seja, sua assimilação ao meu vocabulário não foi natural, como a maior parte do resto desse meu idioma materno - aconteceu quando eu já era adulta, ou quase isso.
Pensei, “o que será que significa?”. Fiz minhas pesquisas, compreendi o que era, achei uma ótima palavra, inclusive. Quem criticaria a capacidade humana de se colocar no lugar do outro para acolher suas dores etc, etc, etc?
Mas, voltando: eu era adulta quando a ouvi pela primeira vez.
Hoje, ela está nos títulos de livros infantis, nos recados que o síndico coloca no elevador, nas suas conversas de boteco com os amigos quando alguém reclama do chefe, da sogra ou do fiscal da CMTU.
Com “resiliência” foi algo parecido: até, sei lá, os anos 2010, ninguém fazia questão de ser resiliente, e, bem ou mal, passavam pelos desafios das suas semanas.
De repente, toda uma geração, às segundas-feiras, compartilha de seus iPhones fotos do nascer do sol com uma frases que as inspirem a continuar sendo resilientes.
“Responsabilidade emocional” eu deixei por último porque é meu exemplo preferido: um jeito de por na conta do outro a responsabilidade pelo que você sente, ou pelas consequências de uma decisão sua.
Vou dar o contexto típico em que a expressão aparece:
Relacionamentos amorosos (ou não-amorosos) frustrados, em que alguém do casal (a mulher, vamos supor) se envolve emocionalmente e o outro (o homem) não, mas continua, vamos dizer assim, usufruindo das partes boas de um não-relacionamento enquanto consegue.
Esse segundo sujeito é um exemplo de alguém sem “responsabilidade emocional”: não age de forma responsável em relação às emoções da pessoa com quem se relaciona.
A expressão acaba - infelizmente - poupando a mulher de reconhecer o próprio erro. Pra piorar, tira dela o alívio de reconhecer que o rapaz foi nada mais, nada menos, do que um filho da puta.
Minha implicância não é sem fundamento.
Palavras são poderosas. Elas transmitem ideias.
Nos ajudam a assimilar conhecimento. A entender e dominar nossos próprios pensamentos.
Falar e escrever são formas de você entender a si mesmo, aos outros, ao mundo.
Então, quando você diz que “falta empatia” a alguém em determinada situação, abreviando um raciocínio que se estenderia por mais frases, você está amputando mais do que o tempo da conversa: está amputando seu próprio raciocínio. Seu próprio entendimento sobre aquela situação específica. Sua análise sobre como você lidou com ela.
A exata descrição da realidade nos ajuda a assimilá-la.
Se você é uma mulher adulta, que chora no banheiro da empresa quando seu superior antipático critica o seu trabalho, mas não pode pedir demissão por motivos óbvios, se vangloriar por estar sendo uma pessoa muito resiliente é uma armadilha.
Ela te priva de entender que está, somente, cumprindo seu dever.
E que precisa de mais maturidade ao lidar com críticas.
Uma realidade mais constrangedora, mas que enquanto não for assimilada, não será resolvida.
Vamos supor que essa mesma mulher teórica e exemplificativa reclama de um “ex-ficante” por quem estava apaixonada, e que alimentou nela a ilusão de que ela significava mais para ele do que sexo fácil.
Tempos depois, ela descobre que ele era casado.
Nesse momento de dor, dizer que ele “não tem responsabilidade emocional” não vai trazer nem conforto, nem solução.
Seria muito melhor descrever a situação com um simples e verdadeiro “fui uma trouxa”. Ou um justo e reconfortante “ele foi um filho da puta”.
A natureza humana é antiga demais para precisarmos de novas palavras assim, a cada década.
Confie nas antigas. Recorra a palavras usadas há cem anos. Converse como se fosse sua avó.
Em vez de “empatia”, use “compaixão”, “solidariedade”, “amor”, “misericórdia”.
Em vez de “resiliência”, procure ter “coragem”, “audácia”, “obstinação”.
Em vez de “responsabilidade emocional”, reconheça seu erro e a falta de caráter do outro.
Palavras têm poder. Use-o.
Chame filhos da puta de filhos da puta.
Ótimo texto, Renata.
Me veio de pronto na cabeça a palavra “gratidão”. Hoje em dia as pessoas dizem gratidão em vez de obrigado, só porque viram algum budista light repetindo nas redes sociais. Também usam gratidão como filosofia de vida, afirmando que ao acordar devemos ter gratidão; que na adversidade devemos ter gratidão; em qualquer situação devemos ter gratidão. Se tornou uma palavra mágica e um conselho de milhões; quem manda alguém ter gratidão se sente muito superior e iluminado, quando bastaria mandar a pessoa parar de reclamar e encher o saco, que na vida é normal sofrer e ter adversidades, mas que todos têm capacidade de superar.
Concordo com cada palavra sua, Renata.
Essas palavras da moda tem um caráter pedante e meio frouxo. Como se a pessoa tivesse certa pena de si mesma. Essa é a sensação que me passa. Estranho, não é?
A gente tem que manter as rédeas curtas e não ser "bonzinho" ao avaliar nossas atitudes. Por experiência própria, os tais bonzinhos sempre me trouxeram mais problemas.